domingo, 19 de dezembro de 2010

A reserva do possível - breve apanhado

1. Situação dos Direitos Sociais na classificação dos Direitos Fundamentais

Segundo a maioria da doutrina constitucionalista, os direitos fundamentais podem ser divididos, conforme a ordem cronológica em que passaram a ser reconhecidos, em:

a) De primeira geração, abrangendo os direitos civis e políticos, com vistas à efetivação do princípio da liberdade;

b) De segunda geração, abarcando os direitos econômicos, sociais e culturais, agora com realce ao princípio da igualdade, e

c) De terceira geração, reconhecendo os direitos da coletividade e consagrando o princípio da solidariedade.

Essa classificação não é unanimemente aceita, já há autores que defendem a existência de outras gerações, mais uma ou duas, pelo menos. Também se critica a adoção do termo "geração". É de Ingo Sarlet a tese que o ideal seria a utilização dodada ação estatal; de segunda família, onde é visto como um direito que deve assumir uma função social; ou até de terceira família, onde a propriedade passa a ter dimensão de um direito que ultrapassa a titularidade individual e alberga bens cuja propriedade se perde difusamente e merece proteção, como é o caso do meio ambiente. termo “dimensão”, tendo em vista que o termo “geração” pressupõe o fim anterior, o que certamente não ocorre com esses direitos, tendo em vista que, ao invés de substituição, segundo o autor, há superposição. Aryon Sayão Romita também faz sua crítica (ele prefere falar em “famílias” de direitos, ao invés de “geração” ou “dimensão”), referindo que não se pode falar em famílias de direitos, mas direitos que, em determinados momentos sociais, assumem famílias diferenciadas. Por exemplo, o direito de propriedade tanto pode ser de primeira família, onde é visto como um bem a ser protegido

Enfim, o tema é controverso, mas a classificação usual contém utilidade suficiente para o objetivo desse trabalho. Então, a despeito das discordâncias apontadas, pode-se afirmar seguramente que os direitos sociais são aqueles que ensejam à pessoa humana o direito a um “fazer” do estado, a uma ação positiva do ente público de modo que eles sejam satisfeitos in concretu. Previstos no artigo 6º dada República (CR), relacionam-se às políticas públicas, que devem ser praticadas pelos entes públicos. Constituição

São tão relevantes esses direitos sociais que a posição majoritária na doutrina é pela sua fundamentalidade – posição maximalista. Para essa posição, todos os direitos do artigo 5º ao 17 da CR são direitos fundamentais, inclusive os direitos sociais, sem prejuízo da chamada “abertura material”, fundamentada no artigo 5º, parágrafo 2º, que alcança outros dispositivos expressos no texto constitucional (exemplo: direito difuso ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, previsto no artigo 225, caput, da CR, e o direito de exigir do legislador restrições ao poder de tributar). Também podem ser considerados fundamentais Tratados Internacionais de Direitos Humanos incorporados pelo processo de Emenda Constitucional e até direitos fundamentais implícitos (exemplo: direito fundamental de a pessoa humana conhecer suas origens).

2. Dificuldades no exercício dos Direitos Sociais

A dificuldade prática é que a previsão dos direitos fundamentais é superior aos recursos dos entes públicos para a sua plena satisfação, mormente em países em estágio inicial de desenvolvimento como é o caso do Brasil. Não há como atender a todas as demandas sociais simultaneamente, recaindo ao Poder Judiciário a difícil tarefa de equalizar a questão. O Poder Público se reserva à prerrogativa de prestar somente o direito social que for materialmente possível de ser prestado, o que é bastante defensável, mormente se comprovado efetivamente que não havia efetivamente um modo lícito de realizar a respectiva prestação. Daí a denominação "Reserva do Possível".

Além dessas limitações fáticas, convém ressaltar que há também as limitações jurídicas, impostas pela própria CR, pelas leis orçamentárias e pela Lei Complementar nº 101 (Lei de Responsabilidade Fiscal), que restringem ainda mais a prestação dos direitos sociais.

3. A cláusula da Reserva do Possível e sua aplicação pelo Poder Judiciário

Nesse cenário, a jurisprudência do STF e do STJ tem reconhecido a cláusula dado Possível, que verifica respeito às citadas limitações fáticas, como já vimos. Essa análise é feita com auxílio do princípio da proporcionalidade, que regra que o autor só pode pedir prestações que sejam necessárias, adequadas e razoáveis. Evidentemente, não se deve desconsiderar também eventuais limitações jurídicas que eventualmente exsurjam no caso concreto. Reserva

Nessa análise, o Poder Judiciário terá que verificar in concretu se a ausência de uma certa prestação social feriria o mínimo existencial da pessoa humana, caso em que mereceria a respectiva proteção, não podendo o Poder Público, na linha dado STF, se escusar de cumpri-la sob a alegação da cláusula dado possível. Mas isso também não é absoluto, como veremos a seguir. jurisprudência reserva

Viola-se o mínimo existencial de uma pessoa humana quando se verificar a omissão na concretização de direitos fundamentais, inerentes à dignidade da pessoa humana, prevista no artigo 1º da CR, seara em que não há espaço de discricionariedade para o gestor público, por se tratar de encargo político-jurídico que incide sobre o ente público em caráter mandatório. Com efeito, as Constituições são criadas, segundo a doutrina maciça, em última análise, exatamente para esse fim, qual seja, o de assegurar a dignidade da pessoa humana. Assim, nos termos doda CR, o mínimo existencial será o conjunto de bens e utilidades básicas imprescindíveis para uma vida com dignidade, tais como a saúde, a moradia e a educação fundamental. Assim, através de metas prioritárias, o Estado deve conciliar o Mínimo Existencial e a Reserva do Possível. artigo 7º, IV,

Caso reste comprovado que o Poder Público não tenha condições orçamentárias, não se poderá razoavelmente exigir, considerada a restrição material existente, a imediata efetivação do comando constitucional. Dessa forma, sob pena de se transformar em decisão despida de qualquer efeito concreto, caberá ao Poder Judiciário, mediante prova apresentada pelo Poder Público, investigar a real capacidade material de que existe disponibilidade orçamentária para o cumprimento, aferindo, portanto, se razoavelmente era possível a implementação do direito prestacional previsto na Lei Maior.

Ademais, pode acontecer que a realização do direito de um único indivíduo resultaria no cerceamento do direito de todos os outros. O STF vem fazendo essa análise, e negando o direito, por exemplo, nas questões de saúde, quando o tratamento que determinado indivíduo necessita se mostra tão dispendioso a ponto de comprometer o orçamento para benefício de outros tantos indivíduos na prestação dos serviços de saúde.

Enfim, há que existir uma ponderação no caso concreto entre o “mínimo existencial” e a “reserva do possível”. Na esteira da manifestação de Ingo Sarlet:

“Embora tenhamos que reconhecer a existência destes limites fáticos (reserva do possível) e jurídicos (reserva parlamentar em matéria orçamentária) implicam certa relativização no âmbito da eficácia e efetividade dos direitos sociais prestacionais, que, de resto, acabam conflitando entre si, quando se considera que os recursos públicos deverão ser distribuídos para atendimento de todos os direitos fundamentais sociais básicos (...) em se tendo em conta que a nossa ordem constitucional (acertadamente, diga-se de passagem) veda expressamente a pena de morte, a tortura e a imposição de penas desumanas e degradantes mesmo aos condenados por crime hediondo, razão pela qual não se poderá sustentar - pena de ofensa aos mais elementares requisitos da razoabilidade e do próprio senso de justiça - que, com base numa alegada (e mesmo comprovada) insuficiência de recursos - se acabe virtualmente condenando à morte a pessoa cujo único crime foi o de ser vítima de um dano à saúde e não ter condições de arcar com o custo do tratamento.”

Outro cuidado que o Poder Judiciário deve ter, ao inadmitir a cláusula da reserva do possível, é em não adentrar nas competências legislativa e executiva, para não violar o princípio constitucional da separação dos poderes, expresso no artigo 2º dada CR. Nesse caso, não estará invadindo as competências dos outros Poderes da República, mas fazendo controle de constitucionalidade dada pessoa humana CR, também de notável relevância jurídica. Para tanto, terá de atender somente a demandas calcadas em normas de direitos originários de prestação, que são as que decorrem diretamente lei orçamentária e, como já dissemos, garantindo o mínimo existencial .

Concluindo, pode-se inferir que a cláusula da Reserva do Possível, ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível, qual seja, a comprovação objetiva da alegação de incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, não pode ser invocada pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se, dolosamente, do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade.

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